quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Carta LXXXV


Quando eu cheguei, os teus olhos já procuravam os meus. Encontraste-os, encontraste-me, mesmo antes de eu chegar a ti. Contigo sempre foi assim, não foi? Encontravas-me, estivesse eu onde estivesse. Resgatavas-me, contra todas as forças do mundo, de todos os mundos, como se toda a gravidade que existe, existisse apenas para me levar para ti. Buscavas-me, contra todas as forças que me faziam voar para longe de ti. Ias sempre buscar-me de volta. Olhavas-me e sabias-me, simples. Simples? Quando, depois dos encontros e reencontros infinitos em que os meus olhos já eram procurados pelos teus sem saberem, os meus olhos deixaram encontrar-se e encontraram os teus; quando os teus olhos entraram nos meus, inundaram-mos e inundaram-me, com a música que tens neles. Com a música que és tu. Quando os teus olhos entraram nos meus, inundaste-me com a tua música. Com a música que és tu. Inundaste-me de ti. Comecei, nesse segundo, a aprender a música que me inundou os olhos. A alma. O coração? Começaste, nesse segundo, a ensinar-me a música com que os teus olhos procuravam os meus, mesmo antes de os meus saberem. Começaste a ensinar-ma tanto, como se fosse essa a música compassada que o meu coração devia seguir. Como se fosse essa a música compassada que ensinava (e que permitia) o meu coração a bater. Como se fosse essa a música do meu coração. A música que és tu. Ensinaste-ma tanto. Ensinaste-ma sempre que os teus olhos procuravam, sem descanso, os meus, até lhes entrarem bem dentro, bem fundo e os prenderem aos teus. Ensinaste-ma sempre que a tua voz falava aos ouvidos do meu coração. Ensinaste-ma sempre que o teu sorriso se me tatuava na alma e na pele. Ensinaste-ma sempre que as tuas mãos me faziam estremecer e parar o coração, se me tocavam. Ensinaste-ma sempre que fundias o meu com o teu abraço. Ensinaste-ma sempre que me abraçavas o coração. Ensinaste-ma até quando começaste a levar-me pedacinhos, sempre que me entravas e saías do coração mil vezes, como se não doesse, e eu comecei a aprender que tinha que voar para longe de ti. Ensinaste-ma sempre que ias buscar-me de volta. Sempre que me resgatavas contra todas as forças do mundo, de todos os mundos, como se toda a gravidade que existe, existisse apenas para me levar para ti. Ensinaste-ma tanto. Só não me ensinaste que também ias ensinar-me que a tua música, a música que és tu, a música com que me inundaste, a música que me ensinaste tanto como se fosse essa a música do meu coração, afinal sempre foi e é uma música só tua. E, por breves instantes, dos corações em que a vais tocando. Mas não faz mal, querido coração musical, agora já nada faz mal. Eu fui uma boa aluna. Aprendi a tua música pelas pautas que me escreveste e pelas entrelinhas também. Cheguei lá. Cheguei ao lado de cá, onde me vês hoje, depois destes anos todos. Segui as forças que me faziam voar para onde tinha de voar, sem ouvir a música da gravidade. Só estou a escrever-te (apenas hoje) porque, dizem-me, há músicas que nos perseguem para sempre. A tua (já) não me persegue. A tua é a música que me (tatuou) inundou os olhos, a alma. O coração. E que depois me ensinou a voar.